Há mais ou menos duas semanas, tive a grata oportunidade de assistir ao documentário “O Começo da Vida“, que está em cartaz em várias cidades do Brasil, mas poderá ser visto na Netflix brasileira a partir de junho (veja aqui como assistir se você não tiver acesso à Netflix ou se sua cidade estiver fora do circuito). Obra muito emocionante, delicada, sensível, mas ao mesmo tempo, uma chamada forte e poderosa à consciência. O documentário mostra, de forma clara e contundente, a influência dos primeiros 1.000 dias, ou dos primeiros três anos na vida de uma criança, não importando sua nacionalidade ou condição econômica.
Adoro quando vejo uma obra desse tipo e consigo aprender coisas novas, ou mesmo fazer ligações entre conceitos já conhecidos. Creio que o que vi e ouvi em “O Começo da Vida” não interessa somente a mim, como mãe, mas sim a todos os seres humanos, filhos ou pais. Dar a devida importância ao começo da vida de uma criança é garantir que ela se desenvolva plenamente, é investir no futuro, no mundo que queremos para nossos filhos.
Numa entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, a diretora do filme, Estela Renner, que também dirigiu o maravilhoso documentário “Muito Além do Peso” diz que, a princípio, a ideia da obra seria focar apenas a primeira infância. “Passando o tempo, descobri que estávamos falando sobre um projeto de humanidade. Algo bem maior do que nós”, conta. “O filme se tornou uma ferramenta de empoderamento para os pais. Porque mostra que a criança não precisa de brinquedos caros e experiências caras. O que ela precisa é de algo muito mais acessível. Quem já viu uma criança fazer suas descobertas encontrou ali o extraordinário. É só você conseguir estar presente, mesmo cansada. A criança aceita seu cansaço. Ela não quer os pais perfeitos, mas presentes”, afirma Estela, na entrevista.
Dar a devida importância ao começo da vida de uma criança é garantir que ela se desenvolva plenamente, é investir no futuro, no mundo que queremos para nossos filhos.
Aqui vão alguns tópicos que retirei do filme, de acordo com minhas impressões e que me fizeram refletir profundamente sobre como estamos recebendo e acolhendo nossas crianças e que projeto de ser humano estamos criando para o futuro. Cada um deles merece ser desenvolvido em novos textos e traz um riquíssimo material para reflexão:
- Experimentação x Desobediência – Na primeira infância, o maior motivador da criança é a experimentação. Pegar, cheirar, morder, sentir o mundo com as mãos, dar vazão à sua curiosidade inata, tudo isso faz parte do “ser criança”. Durante séculos, confundimos curiosidade com malcriação, desobediência e até mesmo, nos dias de hoje, com hiperatividade. É preciso desconstruir a ideia de que uma criança “normal” é aquela criança “boazinha”, que não se suja, que fica sempre quietinha e “nem faz bagunça”. Falo mais sobre isso aqui.
- Criança não é folha em branco – Há uma ideia generalizada de que criança é esponja e folha em branco, mas estudos científicos recentes mostram que, desde bebês, as crianças nascem com alguns conceitos inatos, como empatia e moral. E já começam a aprender ainda no útero. Quando nascem, trazem as sementes de suas futuras personalidades. A educação deve levar isso em conta para poder trazer a tona o potencial máximo de cada ser humano.
- “O afeto é a fita isolante da ligação entre os neurônios” – Essa frase me chamou muito a atenção: o carinho, o afeto, o cuidado, são responsáveis por garantir a interação harmônica e saudável entre os neurônios e o desenvolvimento pleno da inteligência, na infância e no futuro.
- O relacionamento com a mãe molda a visão de mundo – A criança precisa desse referencial de afeto para conseguir perceber que “o mundo é bom“. Precisa da mãe ou de um cuidador exclusivo, que queira estar com ela.
- O papel da mãe (e da mulher) ainda é subvalorizado – Nossa sociedade materialista e machista ainda considera absurdo uma mãe que se ausenta do mercado para poder criar os filhos. Mas uma mãe que precisa trabalhar e terceiriza a criação dos filhos também é julgada. Nessa difícil equação, um pai que participa efetivamente dos cuidados rotineiros com a prole faz a mãe se envolver emocionalmente com os filhos, de forma mais profunda e efetiva. O vínculo do pai com os filhos se dá no cuidado e na presença. Também falo sobre isso aqui.
- A criança existe na brincadeira (aqui e agora) – É preciso dar oportunidades para que a cirança invente a própria brincadeira, em vez de oferecer roteiros, orientações, conselhos e brinquedos prontos. O brincar livre e a livre experimentação são um antídoto para o tédio. Amor, palavras e brincadeiras simples não custam nada e são os maiores presentes.
- Mãe tem que deixar o pai participar – Não existe maneira “certa” de cuidar de um filho. Muitos conflitos surgem da ideia de que somente a mãe sabe como exercer os cuidados básicos. É preciso dar espaço para que o pai, que esteja desejoso de participar, possa participar efetivamente.
- Amor também se aprende, é construção feita de cuidado diário – A ideia de que o amor é algo que surge e permanece sem que tenhamos que trabalhar para mantê-lo é algo profundamente enraizado na cultura e nos nossos costumes. Mas o amor pelos filhos, como escrevi aqui, é algo que se constrói, nas pequenas tarefas e cuidados do dia-a-dia.
- “As crianças tem coisas valiosas para dizer. Se você não as escuta, você as perde” – Uma das falas mais lindas do filme, que me tocou profundamente. Precisamos estar atentos para ouvir as preciosas lições que esses pequeninos e amados seres nos ensinam, todos os dias.
- Desigualdade e pobreza destroem uma geração – “O Começo da Vida” mostra casos dramáticos de crianças em condições precárias de saúde, segurança, sobrevivência e a luta de seus pais e cuidadores para dar a elas o mínimo possível. A conclusão óbvia é que, na imensa maioria dos casos, não se pode ajudar as crianças sem antes ajudar os adultos que cuidam delas. Uma criança não é filha só de uma mãe, ela é filha também do meio (pobreza, crime, drogas, etc). Uma criança pertence à humanidade inteira.
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